São Paulo, hora do almoço, num dia de junho de 1963
CEZARINO CUMPRIMENTOU O professor, que chegara à cantina todo encasacado, à vista da garoa persistente, que caíra por toda a manhã na capital paulista. Era um local pequeno, mas aconchegante, e ele escolhera uma mesa afastada, onde podiam conversar. No cardápio: A Mediunidade.
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– Prezado Dr. Cezarino, tenho acompanhado suas atividades no IDMK (a), bem como os artigos que publica. É importante para o desenvolvimento da ciência espírita que pessoas como você, de fora do movimento, mas de espírito livre de sistema, preparadas e bem-intencionadas estejam estudando os fenômenos paranormais e apoiando projetos de pesquisas nesta área.
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– E o livro sobre as curas paranormais (b), quando vai sair? – Ah, está em fase de revisão final. Deverá estar nas livrarias, sem falta, neste segundo semestre.
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– Pois essa questão da mediunidade, da dificuldade, dos escolhos sobre o seu exercício, é um dos pontos mais sensíveis do Espiritismo. E olha que Kardec cercou de extremos cuidados tudo que se refere aos médiuns e à prática mediúnica, incluindo a mediunidade de cura, que essa, meu caro, é ainda pior. Mais complexa, mais controvertida, mais sujeita a desvio e corrupção.
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– Digo com toda ênfase: é lamentável e perigosa a situação dos médiuns de cura, entre nós. São tratados como caso de polícia, não recebem apoio de nenhuma instituição universitária, nem de qualquer outra, nem mesmo das espíritas. Sem orientação, sem apoio, sem defesa mental ou espiritual, assediados por encarnados interesseiros e espíritos perturbados, sujeitam-se a todos os riscos: inquéritos penais, depauperamento mediúnico, perversão da faculdade, processos obsessivos. É uma pena, mas é a dura realidade.
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– Em nosso tempo, no que se refere à mediunidade, Kardec foi o mais representativo dos investigadores e teórico pioneiro. E foi também o primeiro a escrever um completo tratado sobre o tema – O Livro dos Médiuns, no qual podemos encontrar informações preciosas sobre o diagnóstico, o desenvolvimento, a prática e a segura orientação para o seu exercício.
– Você tem razão, trata-se de formidável roteiro de caráter médico-científico, teórico-filosófico e ético-moral para a prática mediúnica, se posso me expressar assim.
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– O que muita gente não sabe, e eu tenho falado bastante sobre isso, é que a mediunidade não é uma invenção espírita. Médiuns sempre os houve, em todos os povos e em todas as épocas. Eram médiuns os sacerdotes dos oráculos, as pitonisas, os profetas, como o são os xamãs e os pajés dos povos selvagens ou semisselvagens atuais.
– E como a mediunidade é de todos os tempos, vamos encontrar ao longo da história incontável número de fatos supranormais, bem como tentativas de controle e instruções para o bom exercício mediúnico.
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– Bem me lembro de Moisés – os textos mosaicos contêm, na verdade, não uma proibição, mas uma regulação da mediunidade, que, por aqueles tempos, misturada a mitos e ritos oriundos do Egito e de influências de outras culturas primitivas, tornara-se objeto de intensos abusos por parte de agoureiros, feiticeiros, necromantes. 1
– Isso, como se sabe, é o uso corrompido da faculdade.
– Sim, mas está evidente na passagem de Eldade e Meldade que Moisés não proibia a prática mediúnica virtuosa; antes, a incentivava. 2
– Claro, basta recordar que, na elaboração da Septuaginta 3, a palavra profeta [do grego PROPHETES] foi a escolhida para traduzir o termo hebraico nabi, o qual possui o significado de vento, sopro, espírito, e, ao corrente, tinha o sentido de “aquele que falava por meio do Espírito de Deus”, o que, em suma, é o médium.
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– No Antigo Testamento há ainda uma preciosa passagem que se deu com Balaão, na qual, instado por Balaque a perverter o dom mediúnico, recusou terminantemente as recompensas que o rei lhe prometera. 4
– É verdade, e o fez orientado por seu guia espiritual, que o advertira acerca do caminho que estava seguindo, atraído por valores materiais. 5
– No Novo Testamento vamos encontrar diversas referências, mas tenho como mais expressiva a epístola de Paulo acerca dos dons espirituais, 6 que praticamente se constitui num “pequeno livro dos médiuns”.
– Ah, concordo, ali o apóstolo se reporta, sinteticamente, a diversos aspectos da mediunidade, que Kardec desenvolveu posteriormente.
– E você naturalmente se recorda da passagem de Elimas, o mágico, que tentava perverter os caminhos do Senhor, a quem Paulo cegou, mediante uma ordem espiritual. 7
– Sim, e também da que ocorreu com Ceva e seus filhos 8, aquele grupo de exorcistas ambulantes e falsos, que o próprio espírito obsessor tratou de pôr a correr, quando tentavam praticar exorcismo usando o nome do Cristo.
– Há ainda duas passagens significativas em Atos dos Apóstolos para o estudo da mediunidade nos tempos apostólicos. A primeira 9 evidencia a universalidade do dom mediúnico: Pedro e João desenvolvem, pela imposição das mãos, dons mediúnicos em habitantes da Samaria, povo historicamente desprezado pelos judeus por causa de diferenças de raça, de política, de religião.
– A segunda demonstra que o dom não pode ser adquirido, isto é, o dom é natural, inato, e depende mesmo de condições fisiológicas, das quais o médium é dotado pelo nascimento. É o caso de Simão, o mago, possuidor de algum tipo de mediunidade, que utilizava interessadamente. Pois bem, ele quis comprar o poder de impor as mãos e desenvolver nas pessoas o dom de receber espíritos, mas Pedro o admoesta severamente dizendo que não se pode comprar com dinheiro o dom de Deus. 10
– De fato, meu caro. Além disso, esse Simão passou à história também, porquanto de seu nome derivou-se a palavra simonia, que significa o tráfico de coisas sagradas ou espirituais, tais como sacramentos, dignidades, benefícios eclesiásticos, etc.
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– Então, professor, resumindo nossa agradável palestra de hoje: – A mediunidade não se trata de poderes infernais ou angélicos, nem de desconhecidas potências cerebrais ou resíduos de percepção animais, nem manifestação do inconsciente e que tais.
– Exatamente, meu caro Dr. Cezarino. É tão somente o que dela disse Kardec – uma faculdade humana.11 Apenas isso.
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– Foi um prazer conversar com o senhor, estimado professor. Muito obrigado por esse agradável encontro. – Igualmente, Dr. Cezarino, espero revê-lo em breve. ..................................................
NOTAS(a) O IDMK é uma instituição fictícia de pesquisas de fenômenos paranormais, para qual a personagem trabalha.(b) Trata-se de uma referência ao livro Arigó: Um Caso de Fenomenologia Paranormal , que foi lançado no 2o. semestre de 1963, pela Livraria Francisco Alves. A edição atual, revisada e aumentada intitula-se: Arigó, vida mediunidade e martírio.
1 Levítico 19,31; 20,27 2 Números 11,27-29 3 Nota do Editor: Septuaginta é o nome da versão da Bíblia hebraica para o grego. 4 Números 24, 12-13 5 Números 22,28-32 6 I Epístola de Paulo aos Coríntios, cap. 12. 7 Atos 13, 8-11 71 8 Atos 19,13-16 72 9 Atos 8,14-17 73 10 Atos 8,9-11.18-24 11 Nota do Editor: A fé é humana e divina. Se todos os encarnados se achassem bem convencidos da força que trazem em si, e se quisessem pôr a vontade a serviço dessa força, seriam capazes de realizar o que, até hoje, eles chamam prodígios e que, no entanto, não passa de um desenvolvimento das faculdades humanas. (A. Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XIX, 12).